sexta-feira, 15 de novembro de 2013

Satânia - Olavo Bilac

Nua, de pé, solto o cabelo às costas, 
Sorri. Na alcova perfumada e quente, 
Pela janela, como um rio enorme 
De áureas ondas tranquilas e impalpáveis, 
Profusamente a luz do meio-dia 
Entra e se espalha palpitante e viva. 
Entra, parte-se em feixes rutilantes, 
Aviva as cores das tapeçarias, 
Doura os espelhos e os cristais inflama. 
Depois, tremendo, como a arfar, desliza 
Pelo chão, desenrola-se, e, mais leve, 
Como uma vaga preguiçosa e lenta, 
Vem lhe beijar a pequenina ponta 
Do pequenino pé macio e branco. 
Sobe... cinge-lhe a perna longamente; 
Sobe... — e que volta sensual descreve 
Para abranger todo o quadril! — prossegue. 
Lambe-lhe o ventre, abraça-lhe a cintura, 
Morde-lhe os bicos túmidos dos seios, 
Corre-lhe a espádua, espia-lhe o recôncavo 
Da axila, acende-lhe o coral da boca, 
E antes de se ir perder na escura noite, 
Na densa noite dos cabelos negros, 
Pára confusa, a palpitar, diante 
Da luz mais bela dos seus grandes olhos. 
E aos mornos beijos, às carícias ternas 
Da luz, cerrando levemente os cílios, 
Satânia os lábios úmidos encurva, 
E da boca na púrpura sangrenta 
Abre um curto sorriso de volúpia... 
Corre-lhe à flor da pele um calefrio; 
Todo o seu sangue, alvoroçado, o curso 
Apressa; e os olhos, pela fenda estreita 
Das abaixadas pálpebras radiando, 
Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam, 
Fitos no vácuo, uma visão querida... 
Talvez ante eles, cintilando ao vivo 
Fogo do ocaso, o mar se desenrole: 
Tingem-se as águas de um rubor de sangue, 
Uma canoa passa... Ao largo oscilam 
Mastros enormes, sacudindo as flâmulas... 
E, alva e sonora, a murmurar, a espuma 
Pelas areias se insinua, o limo 
Dos grosseiros cascalhos prateando... 
Talvez ante eles, rígidas e imóveis, 
Vicem, abrindo os leques, as palmeiras: 
Calma em tudo. Nem serpe sorrateira 
Silva, nem ave inquieta agita as asas. 
E a terra dorme num torpor, debaixo 
De um céu de bronze que a comprime e estreita... 
Talvez as noites tropicais se estendam 
Ante eles: infinito firmamento, 
Milhões de estrelas sobre as crespas águas 
De torrentes caudais, que, esbravejando, 
Entre altas serras surdamente rolam... 
Ou talvez, em países apartados, 
Fitem seus olhos uma cena antiga: 
Tarde de Outono. Uma tristeza imensa 
Por tudo. A um lado, à sombra deleitosa 
Das tamareiras, meio adormecido, 
Fuma um árabe. A fonte rumoreja 
Perto. À cabeça o cântaro repleto, 
Com as mãos morenas suspendendo a saia, 
Uma mulher afasta-se, cantando. 
E o árabe dorme numa densa nuvem 
De fumo... E o canto perde-se à distância... 
E a noite chega, tépida e estrelada... 
Certo, bem doce deve ser a cena 
Que os seus olhos extáticos ao longe, 
Turvos, quebrados, lânguidos, contemplam. 
Há pela alcova, entanto, um murmúrio 
De vozes. A princípio é um sopro escasso, 
Um sussurrar baixinho.. . Aumenta logo: 
É uma prece, um clamor, um coro imenso 
De ardentes vozes, de convulsos gritos. 
É a voz da Carne, é a voz da Mocidade, 
— Canto vivo de força e de beleza, 
Que sobe desse corpo iluminado... 
Dizem os braços: "— Quando o instante doce 
Há de chegar, em que, à pressão ansiosa 
Destes laços de músculos sadios, 
Um corpo amado vibrará de gozo? —" 
E os seios dizem: "— Que sedentos lábios, 
Que ávidos lábios sorverão o vinho 
Rubro, que temos nestas cheias taças? 
Para essa boca que esperamos, pulsa 
Nestas carnes o sangue, enche estas veias, 
E entesa e apruma estes rosados bicos... —" 
E a boca: "— Eu tenho nesta fina concha 
Pérolas níveas do mais alto preço, 
E corais mais brilhantes e mais puros 
Que a rubra selva que de um tino manto 
Cobre o fundo dos mares da Abissínia... 
Ardo e suspiro! Como o dia tarda 
Em que meus lábios possam ser beijados, 
Mais que beijados: possam ser mordidos —" 
Mas, quando, enfim, das regiões descendo 
Que, errante, em sonhos percorreu, Satânia 
Olha-se, e vê-se nua, e, estremecendo, 
Veste-se, e aos olhos ávidos do dia 
Vela os encantos, — essa voz declina 
Lenta, abafada, trêmula... 
Um barulho 
De linhos frescos, de brilhantes sedas 
Amarrotadas pelas mãos nervosas, 
Enche a alcova, derrama-se nos ares... 
E, sob as roupas que a sufocam, inda 
Por largo tempo, a soluçar, se escuta 
Num longo choro a entrecortada queixa 
Das deslumbrantes carnes escondidas...

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